domingo, julho 09, 2006

Achei muito interessante este artigo e por isso a
seguir o transcrevo


Deixem as empregadas domésticas falarem em paz

Lançamento de "Pequeno Dicionário da Empregada
Doméstica" evidencia a única forma de discriminação que
é amplamente aceita em nossa sociedade: o preconceito
lingüístico

Por Carlos Juliano Barros

Ninguém é obrigado a conhecer alguma coisa de lingüística. E não
é preciso ser especialista em semiótica ou coisa que o valha para
perceber que existe algo de errado, no mínimo estranho, com a
seguinte passagem: “a moça era do norte. De Garanhuns. Nada
contra, mas... sabe como é. Nós, brasileiros, sabemos!”. Torço, do
fundo do coração, para que esse trecho seja apenas um momento
de infelicidade do desembargador aposentado Caio Graccho, que
publicou seu "Pequeno Dicionário da Empregada Doméstica" em
um jornal destinado aos seus colegas magistrados, como noticiou a
colunista Mônica Bergamo na edição de hoje da Folha de S. Paulo.


Espero também que a iniciativa do desembargador de compilar
algumas expressões usadas pelas empregadas domésticas e reuni-las
em "dicionário", a fim de torná-las supostamente compreensíveis,
seja fruto de um desejo irrefutável de contribuir para o
desenvolvimento científico desse campo do conhecimento. Mas tenho
lá minhas dúvidas. Acho que não foi essa a intenção de Caio Graccho,
cujo nome se assemelha e muito ao daquele nobre assassinado por
defender a reforma agrária nos tempos do império romano.


O professor da Universidade de São Paulo e da Universidade de
Brasília, Marcos Bagno, disse certa vez que o preconceito lingüístico
é a única forma de discriminação aberta em nossa sociedade.
Ninguém ousa falar mal publicamente de negros, homossexuais ou
nordestinos, sob a pena de ser tachado de nazista, mesmo que nutra
esse sentimento tão baixo. Afinal de contas, pega mal soar como um
fascista. Mas poucos hesitam em afirmar categoricamente que o
brasileiro não sabe falar português e até zombar – publicamente, se
possível – de quem não domina a norma culta do nosso idioma.
Nesse sentido, o livro do desembargador é exemplar.


Mas o que está por trás desse tipo de preconceito? Em primeiro
lugar, aparece o total desconhecimento sobre os estudos de
lingüística desenvolvidos nas últimas décadas. Infelizmente, por muito
tempo ainda seremos reféns da idéia de que o ensino da língua
materna deve seguir à risca os ensinamentos contidos nas gramáticas
normativas, formuladas por uns poucos iluminados que se julgam no
direito de rotular o que é e o que não é português. E pior: como um
médico, sentem-se no dever cívico de prescrever receitas para curar
esse problema. Há algum tempo já se aboliu a dicotomia certo versus
errado, no meio acadêmico, mas atravessaremos gerações até que o
sonho de Paulo Freire se reproduza efetivamente nas salas de aula.


Um dos atributos mais bonitos de uma língua é justamente a sua
capacidade de variar. Ela difere de região para região, é só pensar
no sotaque de um baiano e de um gaúcho. Ela também se modifica
ao longo do tempo, basta lembrar daquelas expressões da época
da Jovem Guarda consagradas por Roberto Carlos e que hoje
saíram de moda. E ela também se adapta às condições sociais dos
falantes, como mostram as gírias dos jovens de periferia de São
Paulo ou a linguagem das rodinhas das galerias de arte da maior
metrópole do país.


E é justamente esse terceiro tipo de variação lingüística – que os
lingüistas chamam pelo palavrão de “diastrática” – que mais suscita
preconceito. Porque, no final das contas, quando alguém é
estigmatizado pela sua maneira de falar, não são apenas a beleza
das palavras ou a clareza do discurso que estão em jogo, mas a
própria pessoa. Porteiros, pedreiros, faxineiros e todo tipo de gente
pobre e sem formação escolar consistente são as principais vítimas.
Mesmo inconscientemente, julgamos um sujeito pela maneira como
ele fala. E, via de regra, quem conhece as regras da gramática leva
a melhor, seja numa disputa de emprego ou numa conversa de
botequim. Assim, somos facilmente induzidos a crer que um cidadão
que nasceu, cresceu e nunca saiu do Brasil não sabe falar português!
Mas será possível? Alguém teria a coragem de dizer que um alemão
nativo não sabe falar alemão?


Ninguém é obrigado a conhecer nada de lingüística, assim como
ninguém tem a obrigação de ser perito em leis. Uma língua não pode
ser aprisionada em livros, e nem ditada por quem se julga acima do
bem e do mal. A língua é reinventada no dia-a-dia, na boca de
jovens e velhos, de ricos e miseráveis, de sulistas e nortistas. Por
favor, nobre desembargador Caio Graccho, não prive as
empregadas domésticas do direito de falar sem culpa. Elas já foram
muito expropriadas.

publicado no Repórter Brasil

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